Aliados trocam elegibilidade por blindagem penal e redesenham a estratégia
A escolha foi pragmática e incômoda para a militância: aliados de Jair Bolsonaro admitiram retirar a sua elegibilidade do projeto de anistia para não travar a votação no Congresso. A prioridade agora é reduzir o risco penal do ex-presidente e de aliados, deixando a disputa sobre direitos políticos para outra frente – e outro momento.
Na prática, a coalizão oposicionista trabalha com duas frentes distintas. A primeira, imediata, mira uma anistia mais enxuta, com foco nos condenados e processados no contexto de 8 de Janeiro e em investigações iniciadas a partir de 2019, em especial os casos enquadrados como crimes contra o Estado democrático e desinformação. A segunda, de prazo mais longo, joga luz sobre 2026, quando aliados de Bolsonaro projetam uma nova composição na cúpula do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, na leitura deles, poderia reabrir caminhos para revisar a situação de inelegibilidade.
O cálculo político parte de um diagnóstico repetido em conversas reservadas: atrelar a elegibilidade de Bolsonaro ao texto da anistia seria visto como benefício pessoal explícito e detonaria resistência de partidos do centro e da base do governo, além de provocar reação imediata do Judiciário. Líderes do Centrão vêm descrevendo esse item como “gordura” que só afasta votos. Ao suprimir esse trecho, a oposição espera aproximar indecisos e moderados, preservando a espinha dorsal do projeto.
Há um pano de fundo: a defesa de Bolsonaro e seus aliados consideram mais urgente neutralizar riscos de medidas cautelares mais duras ou de novas condenações criminais do que travar, agora, uma batalha pela restauração dos direitos políticos. Mesmo entre aliados, há quem reconheça que insistir na elegibilidade neste momento colocaria toda a operação a perder.
No campo jurídico-eleitoral, Bolsonaro segue inelegível até 2030 por decisões do TSE em duas ações que apontaram abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação: o encontro com embaixadores no Palácio da Alvorada, transmitido pela TV estatal, e atos de 7 de Setembro de 2022 em período eleitoral. Esses casos estão pacificados no tribunal. Qualquer mudança exigiria ou uma virada de jurisprudência em circunstâncias excepcionais ou um novo fato jurídico relevante no futuro. Daí a aposta em 2026.
Aliados de Bolsonaro citam, como fator de estímulo, a previsão de que os ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça – indicados por Bolsonaro ao STF – assumam, respectivamente, a presidência e a vice-presidência do TSE em meados de 2026, a poucos meses da eleição. É uma projeção interna baseada na rotatividade do tribunal. Não há decisão formal sobre isso agora, mas a leitura política no entorno do ex-presidente é que um colegiado com perfil mais garantista poderia discutir teses hoje derrotadas.
Essa estratégia ganhou ainda mais fôlego com a articulação no Congresso para amarrar uma versão “light” da anistia. Em reuniões recentes, interlocutores de oposição passaram a negociar textos menos abrangentes, tentando calibrar o alcance para não conflitar diretamente com decisões do STF e do TSE – algo que, reconhecem, elevaria a chance de judicialização e de derrota no plenário.

O que muda no projeto e onde estão os riscos
O veículo escolhido para a operação é o PL 2858/2022, apresentado originalmente por Vitor Hugo (PL-GO). O texto deve receber um substitutivo que delimita o universo dos beneficiados e estabelece salvaguardas. O desenho em discussão, segundo parlamentares envolvidos, mira três objetivos: 1) pacificar juridicamente penas e processos ligados aos eventos de 8 de Janeiro; 2) tratar investigações abertas a partir de 2019 em temas de crime de opinião e desinformação, com recorte mais estreito; 3) excluir do texto qualquer menção explícita à elegibilidade de Bolsonaro.
Nos bastidores, líderes do PL, do PP e de partidos do centro tentam construir uma maioria simples na Câmara, etapa que exigirá, antes, um relatório aceito na CCJ. O caminho é sinuoso: além do termômetro político, há o jurídico. Uma anistia ampla demais pode ser questionada no Supremo por violar princípios como a impessoalidade e a separação de Poderes. Uma anistia estreita demais perde apoio de quem espera alívio mais abrangente. É nessa fresta que os operadores políticos tentam se equilibrar.
Como seria a tramitação? Depois da CCJ, o texto vai ao plenário da Câmara. Se aprovado, segue ao Senado, onde o clima costuma ser mais prudente em temas sensíveis ao Judiciário. Passando nas duas Casas, o projeto vai à sanção presidencial. O Planalto pode vetar tudo ou em parte. Em caso de veto, Congresso decide em sessão conjunta se derruba ou mantém, exigindo maioria absoluta de deputados e senadores para derrubada. Ou seja, mesmo que a oposição vença a primeira batalha, terá de manter coesão até a última etapa.
No front jurídico, a discussão central é o alcance constitucional da anistia. A Constituição permite anistiar crimes políticos e conexos, mas a controvérsia está em definir o que é “conexo” e como separar atos violentos de manifestações protegidas pela liberdade de expressão. Outro ponto sensível é se uma lei ordinária pode afetar, de forma reflexa, decisões colegiadas já transitadas em julgado. Ministros do STF têm repetido, em eventos públicos, que anistias não podem se transformar em salvo-conduto para atacar o sistema democrático. O recado foi entendido no Congresso.
Do lado político, a retirada da elegibilidade de Bolsonaro do texto muda o discurso em plenário. Em vez de defender um benefício personalizado, a oposição tentará vender a proposta como um gesto de pacificação, com recorte objetivo. Líderes do centro dizem que, sem a “personalização” do item Bolsonaro, há espaço para uma vitória apertada. Governistas, por sua vez, prometem expor qualquer tentativa de usar a lei para apagar crimes violentos, sobretudo os que envolveram depredação de prédios públicos em 8 de Janeiro.
O tema também passa pelo humor do eleitorado. Pesquisas qualitativas em praças-chave mostram cansaço com a pauta judicial, mas rejeição a anistias percebidas como “autoindulgentes”. Deputados têm repetido esse diagnóstico nas reuniões de pauta: anistia mais circunscrita é vendável; anistia “para o chefe”, não.
No entorno de Bolsonaro, a preocupação com o risco penal ganhou força recente, em meio a novos movimentos processuais e a episódios de saúde que tiraram o ex-presidente da rotina pública por alguns dias. Aliados interpretaram o momento como mais um sinal de urgência para resolver, no Legislativo, o que pode ser resolvido agora – e empurrar o capítulo eleitoral para depois. A defesa do ex-presidente, por sua vez, tem dito que não vê risco de prisão imediata e que confia em reverter acusações nas instâncias superiores. Entre prudência e esperança, a política está fazendo o seu próprio cálculo.
O capítulo 2026, no entanto, não é simples. Mesmo com nova presidência no TSE, decisões colegiadas exigem maioria. Mudanças de entendimento costumam vir por casos concretos, não por “revisões gerais”, e dependem de votos. Além disso, eventuais tentativas de reabrir a inelegibilidade de Bolsonaro esbarrariam em um ponto duro: as decisões que o tornaram inelegível foram amparadas em provas e sustentadas por fundamentos que, até aqui, formaram maioria confortáveis no tribunal. A simples troca de comando não garante virada.
O que pode avançar no curto prazo, então? Parlamentares que participam da negociação listam três possibilidades para o substitutivo: 1) delimitar o recorte temporal (2019–2023); 2) especificar condutas não violentas e sem dano patrimonial como passíveis de anistia; 3) amarrar cláusulas de exclusão para quem financiou, planejou ou executou atos com violência, invasão e depredação. Essas amarras são vistas como escudos contra a acusação de “autoproteção”.
Falta combinar com os plenários. Na Câmara, a oposição calcula ter votos para aprovar um texto enxuto se o governo não fechar questão. No Senado, o resultado é mais aberto. Senadores conversam com ministros de tribunais superiores para medir o limite do aceitável. Há ainda a variável da opinião pública, que pode pressionar, a favor ou contra, quando o texto for ao plenário.
Em paralelo, governistas articulam uma estratégia de desgaste: querem forçar a oposição a explicitar, durante a tramitação, quem exatamente seria beneficiado pela anistia e por quais condutas. Quanto maior a transparência, apostam, maior a dificuldade de votar a favor em voto aberto. A oposição prefere termos genéricos, que garantam amplitude sem personalizar casos.
Por ora, o movimento que unificou a tropa bolsonarista foi este: tirar a elegibilidade do ex-presidente da mesa para driblar a acusação de “lei sob medida” e tentar aprovar um texto com cara de pacificação institucional. A aposta no TSE de 2026 fica como plano B – um B maiúsculo, que depende do tabuleiro político, da composição da Corte e, claro, do que ainda acontecer nos processos em curso até lá.
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